sábado, 7 de março de 2009

Retrocesso ou não?

Um dia antes, entre compungida e devota, a quase-candidata Dilma Rousseff leu a Bíblia e participou do show-missa bizantino do Padre Marcelo Rossi. Nesta sexta-feira, no Espírito Santo, o presidente da República deixou o script de lado, esqueceu as conveniências políticas e a estratégia de agradar a todos e fez um veemente protesto contra a excomunhão dos médicos que fizeram o aborto na menina estuprada pelo padrasto. “Neste aspecto, a medicina está mais correta do que a Igreja”, proclamou o presidente. Neste aspecto e em muitos outros. E não apenas a Igreja católica: as religiões, todas as religiões, estão redondamente enganadas ao imaginar que a humanidade ainda não passou pelo Renascimento e o Iluminismo e que o processo civilizatório deteve-se no tempo.Mais piedosa e, sobretudo, mais humana do que o arcebispo de Olinda e o Recife que pronunciou o anátema, a diretora do centro médico onde se processou o aborto, declarou: “Graças a Deus estou no rol dos excomungados.” “Graças a Jesus Cristo sou ateu” escreveu o filósofo e político italiano, Gianni Vattimo, no diário espanhol “El País” (domingo, 01/03, p. 25).Além de cometer o pecado da arrogância e da soberba o arcebispo d. José Cardoso Sobrinho criou um caso diplomático entre a Santa Sé e o estado brasileiro. A afoiteza da sua manifestação contraria frontalmente a recente Concordata assinada em Roma pelo presidente Lula e o papa Bento XVI. Trata-se de uma clara ingerência nos assuntos internos do país já que na quarta-feira, quando excomungou os médicos e a mãe da menina violentada (que autorizou a intervenção médica), o arcebispo declarou que quando uma lei promulgada pelos legisladores contraria a lei de Deus, essa lei humana não tem qualquer valor. O sacerdote insubordina-se contra as leis que deveria respeitar na condição de representante de um estado estrangeiro e promove abertamente a subversão da ordem no país que lhe oferece proteção e liberdade.Esta é uma oportunidade preciosa para retomar a discussão sobre o caráter laico e secular do estado moderno. Os conceitos de democracia e cidadania não têm condição de conviver com dogmas cerceadores da liberdade de escolher.Como aconteceu recentemente na Itália (quando o Vaticano desafiou as autoridades que aceitaram a interrupção da alimentação venosa da jovem Eluana Englaro, há 17 anos em estado vegetativo), é imperioso estabelecer limites nítidos entre as crenças individuais e as normas que regem a sociedade. Crer ou descrer são prerrogativas íntimas, não podem ser desrespeitadas nem impostas.Quando foi divulgada a suposta agressão de Paula Oliveira por skinheads suíços, o país reagiu com veemência às doutrinas xenófobas e racistas que tomam conta da Europa. Agora, por coerência, não podemos nos curvar ao totalitarismo pseudo-espiritual que anula o direito de pensar e individuar-se.Os fantasmas e ameaças que hoje rondam a aldeia global só poderão ser exorcizados com um instrumental ético e regulamentos morais imunes às hipocrisias confessionais. Cinismo é o nome do Inimigo Público Nº 1, ele é o pai e a mãe da corrupção. Falsidade e dissimulação só prosperam em sociedades ambíguas que confundem valores, impedidas de buscar a verdade.Ao proclamar que o aborto é mais grave do que o estupro o arcebispo curva-se à violência. Seu fundamentalismo é o grande fomentador de um relativismo que acabará por liquidar qualquer tipo de solidariedade, respeito humano e amor ao próximo.Raras vezes conseguiu o presidente Lula expressar com tamanha clareza tamanho consenso. Não lhe fará mal algum - ao contrário só o engrandecerá - se levar adiante uma profissão de fé humanista e humanitária. Sua inata religiosidade não será afetada se mantiver a disposição de evitar o sequestro do Estado pelos egressos do feudalismo e os cruzados das trevas.